Quando nos tornamos tão desleixados?
Duas semanas atrás, eu estava olhando o X (falecido Twitter) buscando algumas inspirações — sim, eu faço isso no X, e depois que você ensina o algoritmo, o resultado é incrível —, e me deparei com o seguinte tweet:
E hoje vamos falar sobre isso. E principalmente sobre como alguns designers não se preocupam com os detalhes das interfaces que desenham, e como acham que, por eles não perceberem, ninguém irá perceber também.
Onde isso começou?
Eu dou aulas, mentorias e palestras sobre métricas desde 2020. Numa época que ainda estávamos discutindo se designers deveriam ou não saber codar (a qual eu particularmente não poderia considerar mais irrelevante). Cinco anos atrás, as pessoas ainda falavam de métricas mais substanciais como rage clicks, missclicks, drop-offs de fluxos em testes de usabilidade, e no melhor dos cenários: clickstreams de eventos no Google Analytics.
Em algum momento de lá pra cá, muitos designers amadureceram sua visão sobre produto e passaram a conhecer (e reproduzir) um monte de siglas como CSAT, CES, LTV, CAC, GMV entre outras. Por um lado, fico feliz de ter contribuído de alguma forma com isso, mesmo que em baixa escala. Por outro, muito me preocupa o que estamos deixando de lado para armazenar esse tipo de informação.
Mais recentemente, uma nuvem de discursos tem tomado o LinkedIn com frases como “o melhor design é o que converte!”, “protótipos de alta fidelidade são irrelevantes”, e outras ideias do gênero. E apesar da mensagem original parecer muito coerente, isso esconde uma forte tendência de abandono do zelo ao processo de crafting. E eu quero compartilhar onde, na minha perspectiva, isso encaixa os designers.
Então vamos partir do artefato inicial do tema desse artigo.
Samsung, Apple, design e valor de marca
Para encurtar um pouco da linha de raciocínio, o contraste entre Samsung e Apple é palpável e didático. Enquanto a Samsung historicamente mostra inconsistências visuais em seus sistemas, a Apple construiu uma cultura de rigor com visual guidelines bem definidos.
Designed by Apple in California1 documenta bem a obsessão da Apple por proporções, alinhamentos e relações visuais, detalhando como cada decisão de design é pensada para guiar percepções e simplificar a experiência. Essa atenção aos detalhes não só constrói apenas melhores experiências, mas também cria diferenciação de valor percebido de marca.
O impacto disso é refletido no valor de mercado: apesar da Samsung operar em uma quantidade muito maior de segmentos, indo desde eletrodomésticos a semicondutores, a Apple, focada em poucos produtos extremamente bem desenhados, atingiu valorizações de mercado significativamente maiores. Segundo dados da Statista (2024)2, a Apple é a empresa mais valiosa do mundo, enquanto a Samsung é a 6ª. O design, aqui, é parte fundamental da construção do valor econômico.
Tudo isso partiu de uma definição de qualidade e disciplina como expectativa mínima.
“There is no design without discipline. There is no discipline without intelligence.”
Massimo Vignelli
Como isso se relaciona com disciplina
É curioso observar como "pixel perfect" se tornou um tema polêmico em algumas rodas de design, como se fosse um capricho, quando na verdade, deveria ser apenas o básico. Assim como ninguém esperaria que um engenheiro civil relativizasse a precisão das medidas de uma ponte, nós, designers, não deveríamos relativizar o cuidado visual de uma interface.
Eliot Noyes, um dos pioneiros do design industrial, dizia que o bom design é aquele em que "forma e função estão tão bem entrelaçados que é impossível separá-los"3. Em interfaces digitais, a precisão visual deve ser parte do funcionamento do produto, não apenas “um mero detalhe”. Quando tratamos excelência técnica como algo menos relevante, estamos aceitando a mediocridade nas entregas que realizamos.
“Mas AI já estão fazendo interfaces. Isso torna o crafting mais obsoleto.”
Na verdade torna o crafting mais relevante. O que se torna obsoleto é o design pensado e projetado sem intenção. Se alguém consegue construir uma interface mais eficiente que você apenas com 5 prompts, talvez seja um bom momento para praticarmos mais.
Mas é atrás do discurso citado acima, que se esconde um grande problema.
Os jargões que escondem a inaptidão
Não há nada de errado em falar de estratégia, impacto e resultados de negócio. Pelo contrário, é fundamental. Mas há uma diferença clara entre usar estratégia como um pilar real da prática e usá-la como uma cortina de fumaça para esconder a falta de habilidade na construção de interfaces e visual design.
O autor Bob Baxley, de "Making the Web Work"4, defende que a "excelência de execução é parte da experiência". Em outras palavras, a estratégia sem craft é uma promessa vazia. Grandes ideias precisam ser traduzidas em execuções igualmente grandiosas para alcançar resultados tangíveis.
A interface não existe por si só. Ela é um mediador entre o usuário e um sistema. E tratar visual como superficialidade é um erro grave. Visual é funcional. Craft também é estratégia.
Cuidar dos detalhes não é preciosismo; é responsabilidade. Quando negligenciamos isso, comunicamos desleixo àqueles que usam nossos produtos. Cada tela que desenhamos é uma declaração sobre o tipo de designer que escolhemos ser.
Uma boa base é o Aesthetic–usability Effect, que descreve um paradoxo onde pessoas tendem a achar sites considerados mais agradáveis esteticamente, como sites mais fáceis de utilizar. Tem um artigo completo sobre o tema no site da NNGroup.
Por fim, prezo que todas as métricas e análises de dados que aprendemos para embasar nossas decisões, não nos tornem designers menos competentes.
Recomendações da semana
Um lugar legal pra pegar algumas explorações de visual design é o Headers Club. Toda semana eles escolhem um header de um perfil do X e inserem no site. Já possuem vários legais listados e podem servir até como exemplos de banners ou posters;
Uma das melhores recomendações que posso passar essa semana não é muito específica mas vale a pena: explore sites e aplicativos do oriente (Tanto Leste Europeu quanto Ásia). Existe muito a ser aprendido com a maneira criativa de fazer design deles, tanto com intefaces e componentes, quanto banners de venda. Vou deixar alguns exemplos: Bilibili, o Taobao e Suning. Não fique só na página inicial, mesmo não sabendo mandarim, explore outras páginas e perceba os detalhes;
E um último video da Phoebe Yu, em relação a recomendação anterior, explicando diferenças culturais na construção de interface, maneira de fazer design e densidade de informações entre sites e aplicativos ocidentais e chineses.
Referências visuais



Apple Inc. (2016). Designed by Apple in California. Apple Books.
Statista Research Department. (2024). Most valuable companies worldwide as of January 2024. Statista.
Noyes, E. (1955). Design and the Corporate Image. Harvard Business Review.
Baxley, B. (2002). Making the Web Work: Designing Effective Web Applications. New Riders.
Faz tempo que não leio um texto tão bom, envolvente e extremamente embasado e apesar de ser da área de produto (PM), que está com um boom de PMs que estão explorando design sem design rs
Importante porque existe uma falsa sensação que se a IA está fazendo algo grandioso, mas que hoje é genérico, um quebra galho, e estão lidando como bem feito. É ótimo se deparar com textos como o seu, que elevam o nível, porque excelência ainda vai precisar de muito conhecimento humano que só consegue botar criatividade, refinos, contexto e intenção.
Já comecei a seguir aqui e vou acompanhar sempre.
Que texto meus amigos!
Parei para ler duas vezes de tão bom. Muito obrigado Flávio por esse conteúdo grandioso!
Depois passa pra gente dicas de como buscar referências no X rs.